O impacto do ambiente familiar nos primeiros anos de vida: um estudo com adolescentes de uma invasão de Salvador, Bahia

08-06-2010 22:30

 

O impacto do ambiente familiar nos primeiros anos de vida: um estudo com adolescentes de uma invasão de Salvador, Bahia

 

 

Ana Cecília de Sousa Bastos
Ana Cláudia Müller Urpia
Lídia Pinho
Naomar Monteiro de Almeida Filho
Universidade Federal da Bahia
 

 

 

Resumo
Medidas de ajustamento psicossocial de 56 adolescentes de um bairro popular foram efetuadas, mediante um inquérito epidemiológico, para avaliar o poder preditivo de variáveis ambientais e sócio-econômicas, avaliadas quando esses sujeitos tinham entre 0 e 5 anos. Foram consideradas variáveis relativas a três diferentes momentos no curso de vida da família. A qualidade da estimulação no ambiente familiar precoce (escores no Inventário HOME) mostrou-se mais importante do que psicopatologia parental na análise de diferenças entre escores médios para problemas (QMPI) e competências (ACQ). O único fator do HOME significativamente correlacionado ao escore no QMPI foi "punição e restrição física" (p<0,05). De maneira geral, altos escores no Inventário HOME foram associados a mais altos índices de ajustamento. Entretanto, alguns fatores que indicam adversidade nos primeiros anos predisseram níveis mais altos de competência, alertando para a complexidade inerente à determinação de vulnerabilidade ou resiliência no processo do desenvolvimento.
Palavras-chaves: Família, saúde mental, experiência precoce, eventos de vida.

 

Abstract
The impact of early family environment: a study with adolescents from Salvador (Bahia)
Measures of psychosocial adjustment were made through an epidemiological survey on 56 teenagers of a popular neighborhood of Salvador to evaluate the predictive power of environmental and socioeconomic variables, evaluated when those subjects had between 0 and 5 years. Variables concerning to three different moments in the course of life of the family were considered. The quality of the stimulation in the early family environment (scores at HOME Inventory) revealed more important than parental psychopathology in the analysis of differences among medium scores for problems (QMPI) and competencies (ACQ – Achenbach, Quay & Conners' Checklist). The only factor of the HOME Inventory correlated to the score in QMPI was "punishing and restriction" (p<0,05). In general, high scores at HOME Inventory were associated to higher indexes of adjustment; however, some factors that indicate adversity in the first years predicted higher levels of competence, getting the attention for the complexity inherent to determination of vulnerability-resilience in developmental processes.
Key words: Family, mental health, early experience, life events. 

 

 

Nas últimas décadas, ajustes conceituais e metodológicos vêm ocorrendo no estudo dos fenômenos ligados à saúde mental, no sentido de uma maior adequação de procedimentos e recursos metodológicos à natureza complexa desse objeto. A crescente influência de enfoques desenvolvimentais no estudo dos fenômenos ligados à saúde mental concretiza-se no delineamento de uma Psicopatologia do Desenvolvimento, área de intersecção entre a Epidemiologia Psiquiátrica Infantil e a Psicologia do Desenvolvimento, e que Kazdin (1989) define como "o estudo da disfunção clínica no contexto de processos maturacionais e de desenvolvimento" (p.182).

Essa área se constitui a partir de uma integração de interesses e estratégias de investigação, assim caracterizados por Cicchetti (1984): (a) combinação do rigor e amplitude na classificação da psicopatologia infantil; (b) investigação de padrões de vulnerabilidade ou resiliência em crianças de alto risco, conceitos que reorientam o enfoque afastando-se da ênfase em saúde mental ou em disfunção; (c) ênfase em estudos longitudinais sobre padrões de adaptação desde o desenvolvimento inicial; (d) combinação da "intuição e compreensão empática de um clínico com a precisão e maestria de um acadêmico", aliadas à defesa ativa do bem estar infantil. Masten et al. (1995) situam nesse contexto o crescente interesse pela investigação de dimensões como competência, resiliência e fatores de proteção, e da questão da continuidade ou mudança em padrões de competência ao longo do curso de desenvolvimento.

Nessa introdução, após um breve exame do tratamento dessas questões na literatura, enfatizando-se estudos realizados no Brasil, aponta-se o significado dos estudos com perspectiva longitudinal, em particular, quando tratam dos efeitos da experiência precoce.

A pesquisa em psicopatologia do desenvolvimento enfrenta importantes problemas metodológicos, tais como ausência de dados claros, critérios diagnósticos não padronizados, redundância e confusão conceitual (Bastos, 1986; Kazdin, 1989; Rutter, 1986). Em parte, trata-se da maior sofisticação exigida na descrição do comportamento infantil, quanto à fonte de informação (tipicamente, restringe-se a pais ou professores), à seleção de dimensões comportamentais relevantes para diagnóstico, e ao problema da continuidade no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. Ao lado disso, ocorre uma mudança de ênfase nos alvos de diagnose, avaliação e tratamento: não mais criança e sim família. Se a disfunção da criança está em algum grau imbrincada nos padrões disfuncionais de interação na família, é recomendável voltar-se para a gama completa de contextos potencialmente relevantes, empregando-se enfoques multivariados, medidas diferentes, implicando o desenvolvimento de escalas multidimensionais, diferentes amostras de crianças e diferentes métodos de análise. Esses ajustes na investigação certamente se beneficiarão se adotarem uma perspectiva sistêmica, desenvolvimental, reconhecendo a complexidade do processo de adaptação indivíduo-meio, no qual a transformação é a regra, e dos vínculos entre adaptação nos primeiros anos de vida e patologia mais tarde.

No entanto, diferentes dimensões do contexto de desenvolvimento já têm sido investigadas em associação com a ocorrência de transtornos psíquicos na infância e na adolescência. Uma porção significativa desses estudos adota uma perspectiva desenvolvimental, considerando claramente, em suas estratégias, mudanças ao longo do tempo e tentativas de aproximação a mecanismos de risco ou proteção (ver exemplos no Quadro 1).

 

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O modelo bio-ecológico do desenvolvimento proposto por Bronfenbrenner (Bronfenbrenner & Ceci, 1994), quando distingue estudos sobre processos proximais ou distais na investigação do desenvolvimento, oferece um eixo relevante para a seleção de focos de análise. As medidas distais compreendem o status sócio-econômico da família e outros índices demográficos; as proximais estão relacionadas às experiências específicas encontradas por uma criança em uma dada classe sócio-demográfica.

É importante reconhecer que tais fatores ambientais de risco para o desenvolvimento raramente ocorrem de forma isolada, mas sim em um contexto de risco amplo. Aspectos ligados a classe social, por exemplo, costumam influenciar profundamente as atitudes dos pais quanto à criação dos filhos e, portanto, a realização de tarefas evolutivas decisivas para o curso do desenvolvimento, desde a aquisição inicial de locomoção e linguagem até o desenvolvimento de relações intensas entre pares e autonomia na adolescência.

Na busca de determinantes mais claros de saúde mental infantil e para compreender os mecanismos através dos quais eles atuam, variáveis familiares, incluindo características comportamentais dos pais, normais ou patológicas, e condições de vida da família, têm sido colocadas como os aspectos imediatos possivelmente mais relevantes em meio à amplitude de estimulação disponível do ambiente social de desenvolvimento da criança. Dois grandes grupos de estudos podem ser identificados aqui: (a) aqueles que pesquisam o "efeito principal", lendo unidirecionalmente os efeitos do ambiente sobre o desenvolvimento; e (b) aqueles que, utilizando modelos transacionais, aproximam-se da interação entre diferenças individuais e ambiente e de sua influência no desenvolvimento (Sameroff & Seifer, 1983).

Em se tratando, especificamente, de relações pais-filhos, predominam ainda os estudos de efeito principal, ancorados em medidas distais ou medidas proximais. Têm sido encontradas associações entre dimensões de personalidade dos pais, especialmente das mães, e estado de saúde mental dos filhos. Essa tendência é observada também em estudos epidemiológicos realizados no Brasil (Almeida Filho, Santana, Sousa & Jacobina, 1979; Bastos & Almeida Filho, 1990), que indicaram contudo associações mais fortes do estado de saúde mental dos filhos com variáveis sócio-demográficas paternas do que com as medidas de personalidade propriamente ditas.

Apesar das limitações conceituais e metodológicas, Kazdin (1989) identifica uma consistência nas tendências sugeridas por vários inquéritos nacionais nos EUA quando encontram taxas globais de transtornos emocionais, incluindo estimativas de gravidade, em crianças e adolescentes.

O mais amplo estudo revisto, pelo alcance da amostra utilizada, pela abrangência de seus objetivos e pela gama de problemas e competências avaliados, é o de Achenbach, Howell, Quay e Conners (1991). Sem assumir um modelo de doença mental ou qualquer concepção particular sobre a causa ou natureza subjacente dos transtornos da infância, os autores tomaram a incidência de problemas, competências e síndromes como uma medida de ajustamento. A análise focalizou síndromes de internalização/externalização, produzindo dados que fazem pensar em um perfil específico de problemas que diferenças entre taxas globais nem sempre são capazes de mostrar com clareza; usualmente, são encontradas taxas mais altas de morbidade psiquiátrica nos meninos e nas mulheres adultas (Almeida Filho, 1985). Assim, na amostra clínica, as meninas tiveram escores mais altos nas síndromes de "Internalização" (Isolamento, Queixas Somáticas, Ansiedade/Depressão). Essas diferenças de escores começam aos 8-9 anos de idade e tornam-se mais pronunciadas quando as meninas alcançam a idade de 16 anos. Já nas síndromes de "Externalização" (Delinqüência, Agressividade) e na de "Problemas de Atenção", os meninos tiveram escores mais altos. Os autores concluem que os fatores biológicos e ambientais parecem diferenciar tendências em relação a problemas de Externalização versus Internalização em meninos e meninas. Tais diferenças, que aumentam com a idade, são exacerbadas naquelas crianças consideradas desviantes a ponto de serem encaminhadas para serviços de saúde mental.

No plano conceitual, é importante assinalar que as discussões geradas por esse conjunto de estudos voltam-se para a qualidade processual e interacional dos fenômenos ligados ao desenvolvimento, como fica evidente na distinção feita por Rutter (1986) entre indicadores e mecanismos de risco. Ainda nessa direção, afirma-se cada vez mais o papel ativo da criança como sujeito do próprio desenvolvimento (Bronfenbrenner & Ceci, 1995; Schaffer, 1986; Valsiner, 1989; entre outros), exigindo-se uma perspectiva bi-direcional na análise: não só os pais podem produzir transtornos de comportamento, como a presença de uma criança emocionalmente perturbada pode gerar problemas para todo o sistema familiar.

A retomada do interesse pela busca de métodos adequados à natureza processual dos fenômenos ligados ao desenvolvimento traz, portanto, um retorno aos enfoques longitudinais que caracterizaram a Psicologia do Desenvolvimento em seus primórdios. Nos anos 70, estudos longitudinais eram escassos, rotulados como pouco econômicos pelo período de tempo que exigem, pelas dificuldades maiores de obtenção de generalidade e frente à dificuldade de compor e manter amostras aleatórias e representativas e de conseguir replicações (McGurk, 1976). Em muito maior proporção, eram realizados estudos transversais, com resultados imediatos. Atualmente, a relevância atribuída ao enfoque longitudinal define-se enquanto uma exigência teórica, relacionada à questão da invariabilidade e mudança intra-individuais no desenvolvimento (Brooks-Gunn, Phelps & Elder Jr., 1991; Clarke & Clarke, 1986) e à questão da resiliência/vulnerabilidade a estressores (Garmezy, Masten & Tellegen, 1984; Luthar & Zigler, 1991). Por que algumas crianças parecem imunes e outras altamente vulneráveis à adversidade?

Embora concordando com Clarke e Clarke (1986) que o estudo da vulnerabilidade requer sua referência a processos particulares, exigindo descrição detalhada e uma perspectiva interacionista, ainda existe lugar para o mapeamento de fatores de risco (eventos de vida, estressores) e de seu possível impacto sobre o curso posterior do desenvolvimento. Nessa direção, são diversos os pontos que devem ser analisados, desde o momento, a intensidade e duração da exposição a tais fatores (Rutter, 1986) até a idade da criança e a natureza específica dos efeitos observados (Osofsky, 1995). A própria concepção de normal e patológico como pólos dicotômicos deve ser repensada, mesmo porque perdas e progressos no desenvolvimento podem estar associados tanto a risco como a proteção (Noam, 1996).

Até inícios dos anos 80, os únicos estudos disponíveis do tipo seguimento focalizavam crianças hospitalizadas e outras crianças separadas de seus pais (Wachs & Gruen, 1982), e que muito provavelmente estiveram expostas, adicionalmente, a um ambiente social não-responsivo. Mais recentemente, a ênfase na descrição de processos proximais tem gerado maior número de estudos longitudinais (Bronfenbrenner & Ceci, 1994), representando já um volume importante de informações abrangendo diferentes dimensões do desenvolvimento e utilizando um leque diversificado de estratégias de investigação. No Quadro 1, podem ser vistos alguns exemplos ilustrando essa diversidade.

A observação de que as pessoas expostas a severo estresse, em sua maioria, não desenvolvem psicopatologia, redireciona portanto o foco de análise para variáveis do sujeito, dentro de um possível continuum de vulnerabilidade-resiliência. A psicopatologia passa então a ser investigada enquanto um processo que se desdobra ao longo do tempo, mais do que como um estado (Coyne & Downey, 1991); e, em vez de tratar a vulnerabilidade como um atributo fixo da pessoa, em interação com estressores contextuais, volta-se a atenção para as circunstâncias que originam, mantêm ou modificam essa condição e para os recursos pessoais e sociais disponíveis para enfrentamento de estresse.

Nesse contexto, e sobretudo a partir dos estudos de Bowlby e colaboradores (Bowlby, 1984), têm sido intensamente considerados os efeitos da experiência precoce, especialmente da presença de condições precárias no ambiente familiar, sobre a experiência posterior do indivíduo. Sua hipótese de que tais efeitos são duradouros e cruciais continua tendo forte valor heurístico, até os dias de hoje, dando origem a uma ampla gama de estudos. Além disso, gera novas hipóteses, como as de um período crítico ou sensitivo (ainda forte em embriologia), e modelos que enfatizam transações com o ambiente, em especial com o ambiente social, focalizando-se a plasticidade do comportamento humano em diferentes idades.

A qualidade do comportamento materno - prontidão e sensitividade, especialmente nos primeiros anos de vida, como fonte talvez principal de experiência relevante, está estreitamente relacionada à aquisição da competência. O bebê é co-responsável pela prontidão materna na provisão de atenção e cuidado, na medida em que desenvolve sua própria capacidade de interagir com a mãe; trata-se de um processo bidirecional, mútuo, sincrônico. Essa sincronicidade seria, no entender de Wachs e Gruen (1982), o marco zero do desenvolvimento da competência social.

Desse quadro surge, portanto, um conjunto de questões de pesquisa mais abrangente e mais complexo para indagar as implicações dos fatores sociais na psicopatologia, recomendando fortemente a consideração da perspectiva do curso de vida e questionando a identidade real das variáveis chave no processo.

Finalmente, já se delineia a compreensão de que fatores de proteção não são sinônimos de experiências positivas. Revendo a literatura sobre mecanismos psicossociais que determinam psicopatologia, Rutter (1986), revisando estudos realizados nos anos 80, conclui que a proteção seria construída ao longo da superação bem sucedida de acontecimentos prévios, e não na esquiva do estresse: o modo mais ativo de enfrentamento individual frente a estressores ambientais pode converter ameaças em desafios, conduzindo a pessoa a tomar medidas para garantir que seus ambientes futuros sejam menos desvantajosos. Auto-estima e auto-eficácia parecem ser importantes variáveis nesta conexão, assim como boas experiências na escola, realizações resultantes de assumir responsabilidades, e a presença de um confidente de apoio, a exemplo de profissionais de saúde mental inseridos em Centros de Saúde.

No Brasil, a epidemiologia dos transtornos mentais na infância ainda ensaia tornar-se uma área com expressão suficiente para alimentar políticas de saúde com maior impacto na prevenção de danos à população de crianças e adolescentes. Na literatura disponível, mesmo incipiente e dispersa, um mapeamento inicial já permite reunir alguns dados empíricos para avaliar o impacto da adversidade no desenvolvimento, permitindo algum confronto com os achados na área da Psicopatologia do Desenvolvimento.

Um marco inicial nesta série é o desenvolvimento do Questionário de Morbidade Psiquiátrica Infantil - QMPI, em 1976, por Almeida Filho (1985). A partir do QMPI, foram obtidas pelo autor, em uma amostra de 829 crianças de um bairro popular de Salvador, taxas de prevalência de 23,2% (prevalência global no ano), sendo que 1,6% referiam-se a transtornos de desenvolvimento, 15,3% a transtornos neuróticos e psicossomáticos, 2,6% a transtornos orgânico-cerebrais, 2,6% a retardo mental e 1,2% para outros diagnósticos mais raros. Seguem-se estudos de estrutura mais analítica que descritiva. Almeida Filho et al. (1979), utilizando a mesma amostra de 829 crianças, constataram, a partir de análises de regressão múltipla efetuadas sobre o escore das crianças, que apenas o escore obtido pela mãe no questionário de morbidade psiquiátrica, junto às variáveis tamanho de família e idade da criança, estiveram presentes no modelo de regressão resultante. O escore do pai não mostrou qualquer associação com o escore da criança. Toda a equação explicou apenas 16% da regressão total sobre a variável dependente (Almeida Filho, Santana & Mari, 1988).

Bastos e Almeida Filho (1990) encontraram, numa amostra de 545 crianças de um bairro popular de Salvador, associações fracas ou inexistentes entre os níveis de morbidade psiquiátrica dos pais e de morbidade psiquiátrica infantil. No entanto, variáveis ligadas aos pais, especialmente inserção produtiva da mãe, e, com menor força, idade da mãe e do pai, tiveram peso expressivo na explicação da variação do escore de doença mental da criança. Além disso, foram encontradas associações fortes e altamente significantes entre exposição da criança a punição e restrição física, nos primeiros anos de vida, e escores mais altos no Questionário de Morbidade Psiquiátrica Infantil. Esses dados, contudo, não foram diretos, isto é: as associações eram entre a qualidade da estimulação no ambiente familiar, medida conforme estava disponível, no momento, para crianças menores de 5 anos de idade, e entre o escore no QMPI de crianças da mesma família, mas de uma outra faixa etária (5 a 14 anos de idade).

Na cidade de Pelotas, Victora (1988) efetuou avaliações de desenvolvimento junto a uma amostra de 378 crianças da cidade de Pelotas (RS), com idade média de 53 meses (4 anos), utilizando uma adaptação das Escalas de Desenvolvimento de Griffiths. Foram focalizados aspectos como: motricidade ampla, da socialização, capacidade de tomar conta de si, de realizar pequenas tarefas, capacidade de audição e fala, coordenação viso-manual e motricidade fina. Na análise, os sujeitos foram comparados, nos mesmos aspectos, a crianças britânicas da mesma idade, sendo observadas médias mais elevadas das crianças pelotenses nas escalas de motricidade ampla, audição e fala; as crianças britânicas tiveram mais altas médias nas escalas de motricidade fina. No escore global, não foram constatadas diferenças significativas entre as duas amostras. Em relação a indicadores sócio-demográficos, foram encontradas diferenças significativas na área de coordenação visomotora e em idade mental (meninas com 2,5 meses além dos meninos); as médias cresceram progressivamente à medida em que aumentou a renda. As escalas mais afetadas pela baixa renda foram a de desempenho, raciocínio prático e motricidade fina. Observou-se, como em outros inquéritos populacionais realizados em vários países, grande variação em relação ao desenvolvimento e uso da linguagem nas distintas classes sociais, possivelmente relacionada às diferenças no ambiente lingüístico de cada classe e às práticas educativas por elas adotadas.

Os resultados obtidos por Graminha (1994), em Ribeirão Preto (SP), mostram maiores taxas percentuais de problemas de comportamento entre os meninos, especialmente quando se trata dos chamados "problemas de conduta"; as meninas superaram os meninos nos "problemas de personalidade" (desobediência, mau humor, nervosismo, apego excessivo à mãe).

A questão da experiência precoce foi considerada no estudo de Bastos e Almeida Filho (1990), que incluiu medidas da qualidade da estimulação disponível no ambiente familiar de crianças entre 0 e 5 anos de idade (n=104) para explicar, ainda que indiretamente, por meio de um artifício1 (desenho de retalhos), escores obtidos por crianças das mesmas famílias, mas de uma outra faixa etária, 5 a 14 anos (n=530). Os resultados mostraram associações fortes e altamente significantes entre exposição da criança a contingências aversivas na família, em tenra idade, e níveis de morbidade psiquiátrica após os 5 anos de idade.

O objetivo do presente estudo foi investigar os efeitos de variáveis ambientais, sócio-demográficas e de eventos críticos no curso de vida sobre medidas de ajustamento psicossocial em adolescentes (11 a 15 anos), cujo ambiente familiar tinha sido avaliado, 10 anos antes, por Bastos e Almeida Filho (1990). Essas variáveis são introduzidas na análise a partir de uma perspectiva temporal (embora não longitudinal no sentido estrito), o que confere um interesse especial aos dados obtidos, considerando a escassez de investigações longitudinais em nosso país, no campo do desenvolvimento.

 

Método

A presente investigação, um seguimento ao estudo de Bastos e Almeida Filho (1990), foi conduzida para avaliar níveis de ajustamento, incluindo medidas de problemas e competências psicossociais, junto à mesma amostra de crianças (agora adolescentes) cujo ambiente familiar foi diretamente observado no estudo original.

Na apresentação dos resultados desse seguimento, explora-se a possibilidade de discussão a partir de uma estruturação da análise em torno de três conjuntos de indicadores, que avaliam diferentes momentos ao longo do desenvolvimento dos sujeitos: o momento atual, os últimos 5 anos e os primeiros 5 anos de vida. Pretendeu-se, dessa forma, incorporar uma dimensão temporal ao tratamento dos dados.

População e amostra

Os dados aqui analisados provêm de dois estudos conduzidos junto a uma mesma população, em um bairro popular de Salvador2, cujo esquema geral pode ser visto na Figura 1. No primeiro estudo (Bastos & Almeida Filho, 1990), foram selecionadas duas amostras distintas: uma, com 104 crianças entre 0 e 6 anos de idade, cujo ambiente familiar foi avaliado, através do Inventário HOME (Caldwell & Bradley, 1979) e uma segunda (n=545) crianças, na faixa etária de 5 a 14 anos. É a primeira dessas amostras (n=104) que foi alvo principal de interesse no presente estudo, realizado 10 anos depois, sendo recuperados para análise 56 casos válidos (55,8% da sub-amostra original), isto é, para os quais foram completadas todas as informações relevantes.

Coleta de dados: instrumentos e variáveis medidas

Para as variáveis independentes do estudo, foi utilizado o Questionário de Eventos de Vida (Rende & Plomin, 1991), para medir a ocorrência de eventos estressores nos últimos cinco anos. Uma Ficha Familiar foi o protocolo usado para levantar características sócio-demográficas prevalentes no momento da atual coleta.

Como variáveis dependentes, foram tomadas medidas de ajustamento social, incluindo:

(a) uma avaliação da morbidade psiquiátrica infantil, medida pelos escores das crianças no QMPI, que é uma escala de sintomas, desenvolvida por Almeida Filho (1985), para utilização em estudos com populações de 5 a 14 anos. O modelo utilizado contém 35 itens, admitindo em seu preenchimento a avaliação de cada sintoma através escala de Likert de quatro pontos. Na sua validação original, atingiu, em pré-testes de campo, altas taxas de sensibilidade e especificidade (93% e 97%), e aceitáveis taxas de classificação incorreta.

b) uma estimativa dos níveis de competência, sendo utilizada uma versão adaptada da subscala para avaliação de competências do ACQ Behavior Checklist de Achenbach, Howell, Quay e Conners (1991). O ACQ inclui, em sua íntegra, 23 itens de competência (três sub-escalas: competência em habilidades, social e escolar) e 216 itens que avaliam problemas no desenvolvimento (oito grupos sindrômicos). Em sua validação original, obteve os seguintes índices mais importantes: taxa de confiabilidade teste-reteste de r=.91 para escore total de competência e de r=.88 para o escore total de problemas; validade concorrente: com o CBCL (Achenbach): r=0.88; com o RBPC (Quay-Peterson): r=0.78; com o PQ (Conners): r=0.68.

Procedimentos de coleta

Foram feitas duas visitas a cada família, conduzidas por duplas de estudantes de Psicologia, previamente treinados. Após uma primeira visita para identificação dos domicílios a serem revisitados e do núcleo familiar no qual a criança-alvo estava inserida, ocasião em que era preenchida a Ficha Familiar, eram aplicados, numa segunda visita, o Questionário de Eventos de Vida. o QMPI e o ACQ. A mãe era a informante de escolha.

Ánalise de dados

Procedimentos: no banco de dados, além das informações obtidas na presente coleta, foram incluídos os resultados da aplicação do Inventário HOME, quando da realização do primeiro estudo. Foram então executadas rotinas simples da versão para Windows do SPSS para obtenção de análises descritivas, visando caracterizar a amostra segundo variáveis sócio-demográficas e a comparar escores médios das medidas de ajustamento (QMPI e ACQ) dos sujeitos agrupados conforme variáveis sócio-econômicas e presença de eventos de vida. Para avaliar até que ponto as diferenças entre as médias podem corresponder a uma diferença real, não sendo fruto do acaso, utilizou-se o teste "t" de Student, para obtenção de níveis de significância estatística. Foram efetuadas análises de regressão linear, calculando-se o coeficiente de Pearson, incluindo-se renda, idade da criança, idade dos pais, escores no Inventário HOME e escores no QMPI e ACQ. No caso do Inventário HOME e do ACQ, foram analisados escores gerais e sub-escores específicos.

Plano geral de análise dos dados: as hipóteses que orientaram a análise e interpretação dos dados são explicitadas a seguir.

As variáveis dependentes do presente estudo - medidas de problemas e competências no desenvolvimento - são analisadas considerando efeitos de variáveis independentes tomadas a partir de três diferentes cortes temporais.

O primeiro momento, pontual, inclui como variáveis independentes indicadores sócio-demográficos que descrevem a condição da família no momento da entrevista. Propôs-se como hipótese que os níveis de ajustamento (competência e morbidade psiquiátrica) se diferenciam quando a amostra é estratificada por nível de escolaridade dos pais, sexo e idade dos sujeitos.

No segundo momento, pergunta-se por eventos ocorrendo na família nos últimos 5 anos como possíveis determinantes de ajustamento. As variáveis independentes incluídas nestes dois momentos da análise podem ser tomadas como medidas alternativas ou simultâneas de fatores de ordem sócio-demográfica, mas diferindo quanto a captar aspectos supostamente mais dinâmicos ou estáticos de tais fatores; assim, pressupõe-se um impacto diferente desses fatores a depender de como é definida a variável (estática versus dinâmica: dado sócio-econômico versus evento do curso de vida). Hipotetizou-se que as variáveis renda e mudança financeira estariam diferentemente associadas a maiores escores de competência e menores escores de morbidade psiquiátrica infantil; da mesma forma, esperava-se impacto diferenciado de variáveis como estado civil ou mudança de estado civil sobre os escores de ajustamento. A ocorrência, ou não, de outros eventos no curso de vida da família, como trabalho infantil, aumento ou diminuição de discussões conjugais e brigas entre pais e filhos, podem afetar diferencialmente os níveis de ajustamento observados nos sujeitos.

No terceiro momento, são incluídos na análise escores da criança no Inventário HOME, avaliando qualidade familiar e obtidos em algum ponto dos primeiros 5 anos de vida; pergunta-se pelo poder preditivo desses escores quanto aos níveis de ajustamento dos sujeitos 10 anos depois (escores no ACQ e QMPI). Esperava-se que a qualidade do ambiente doméstico nos primeiros 5 anos de vida se mostrasse como um fator preditivo para competência. Nesse sentido, escores mais altos no Inventário HOME deveriam corresponder a níveis mais altos de ajustamento.

 

Resultados e Discussão

Na apresentação e discussão dos resultados, serão focalizadas inicialmente as diferenças entre médias, considerando variáveis sócio-demográficas usuais e os eventos do curso de vida, passando-se então às análises de correlações (Pearson), etapa em que são incluídos os escores obtidos no HOME no estudo original. Em face do pequeno tamanho da amostra, os resultados devem ser apreciados em seu conjunto com uma certa cautela, especialmente porque os subgrupos amostrais nem sempre apresentam uma composição equilibrada em termos quantitativos. Portanto, a presente análise tem um caráter apenas exploratório, buscando comparar impactos relativos de variáveis diferentes quanto ao tipo e quanto ao momento que supostamente atuaram no curso de vida dos sujeitos. Essas limitações não obscurecem a importância do estudo, especialmente pelo fato de que, no Brasil, estudos longitudinais, propriamente ditos, ainda se fazem raros.

Medidas Pontuais

A Tabela 1 apresenta diferenças entre médias segundo sexo, idade e trabalho da criança.

 

 

Observa-se que os meninos apresentaram escores ligeiramente maiores no ACQ e menores escores médios no QMPI do que as meninas; esta tendência se inverte apenas quanto à competência na escola. Embora não se trate de diferenças estatisticamente significantes, essa tendência contraria achados de inquéritos populacionais, que costumam apontar taxas globais mais altas de transtornos de comportamento nos meninos, que são também a maioria da clientela dos serviços de saúde mental (Achenbach, Howell, Quay & Conners, 1991; Almeida Filho, 1985; Graminha, 1994; Rutter, 1986). Os resultados obtidos por Graminha (1994), por exemplo, com crianças de Ribeirão Preto, são consistentes com a tendência observada no sentido da maiores taxas percentuais de problemas de comportamento entre os meninos, especialmente quando se trata dos chamados "problemas de conduta"; as meninas superaram os meninos nos "problemas de personalidade" (desobediência, mau humor, nervosismo, apego excessivo à mãe). Esses dois últimos estudos sugerem ainda um perfil diferenciado por sexo quanto ao tipo de problemas apresentados (externalização/problemas de conduta versus internalização/problemas de personalidade), bem como uma alteração nas taxas globais à medida em que a idade aumenta.

Como são quase imperceptíveis as diferenças entre escores médios ao estratificar a amostra por idade, pode-se supor que as meninas da amostra aqui estudada encontram-se justamente em um ponto de transição entre os perfis característicos da infância e da idade adulta; note-se, porém, que se trata de taxas globais. Além disso, a sobrecarga precoce de responsabilidades e problemas familiares que parece incidir mais sobre as meninas das classes populares, em um momento em que os meninos estão relativamente mais expostos ao espaço fora da casa (Bastos, 1986, 1994), pode contribuir para diferenciá-los.

Já a condição da criança em relação a trabalhar ou não, quando tomada como critério de estratificação da amostra, parece ter um nítido impacto (embora não significante do ponto de vista estatístico) sobre o escore no QMPI. Seria o trabalho fator de proteção? Provavelmente, estariam atuando nesse "amortecimento" da taxa de morbidade psiquiátrica infantil efeitos ligados à maior valorização da criança que trabalha, em seu ambiente imediato: o trabalho pode ser um fator positivo para as relações sociais e para um melhor desempenho em atividades, além de representar oportunidade de contato com mais pessoas fora do contexto familiar. Por outro lado, os possíveis efeitos do trabalho infantil só podem ser avaliados com precisão quando considerados a longo prazo, como indicam Barros e Santos (1991); aliás, já se pode observar uma ligeira diminuição na competência escolar da criança que trabalha, fazendo pensar nos efeitos deletérios da baixa escolaridade de indivíduos precocemente inseridos no mercado de trabalho.

Quando utilizados como critérios para estratificação da amostra, indicadores sócio-econômicos e demográficos convencionais não se mostraram relevantes para diferenciar escores médios de ajustamento dos sujeitos, observando-se poucos resultados estatisticamente significantes. Na análise de regressão linear, foram obtidas correlações altas e positivas entre renda e os escores de competência - para os escores em competência social e geral, essas correlações foram estatisticamente significantes. Esses dados podem ser vistos na Tabela 4, mais adiante.

 

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Como se vê na Tabela 2, apenas a competência escolar parece ser afetada pela variável renda (p<0,05).

Observe-se que as diferenças nos escores médios no QMPI, que não atingem um nível de significância estatística aceitável, não exibem uma tendência clara à medida em que ocorre aumento (pequeno, é verdade) do nível de renda.

A Tabela 2 apresenta ainda os escores médios dos sujeitos estratificados conforme inserção produtiva do pai e da mãe. Embora, mais uma vez, não sejam alcançados níveis de significância estatística, vale observar que, além de as diferenças entre os escores médios no QMPI serem de maior magnitude que as diferenças entre as competências médias alcançadas pelos sujeitos, este possível efeito inverte-se conforme se trate da inserção do pai ou da mãe. Os escores médios no QMPI são maiores se o pai é inserido e se a mãe é excluída. Pode-se apenas sugerir que atributos do pai ou da mãe têm impactos diferenciados sobre os filhos. É o caso das variáveis escolaridade (especialmente da mãe) e idade, associadas a diferenças entre escores médios de ajustamento.

Medidas de variáveis que atuam em anos intermediários: os eventos de vida

A literatura tem demonstrado fartamente que existem relações entre condições sócio-econômicas e diversos aspectos e processos ligados ao desenvolvimento infantil, embora os mecanismos subjacentes a estas relações, configurando condições de risco ou proteção para saúde mental, estejam por ser melhor descritos (Achenbach, Howell, Quay & Conners, 1991; Osofsky, 1995; Rutter, 1986). Os dados ora analisados podem contribuir para uma discussão um pouco mais específica, quando se compara o impacto diferenciado de indicadores sócio-econômicos (como renda, inserção produtiva) e eventos de vida que expressam alterações nas condições recentes de vida.

A Tabela 3 apresenta os escores médios no ACQ e no QMPI do grupo de sujeitos estratificados conforme exposição a diversos eventos do curso de vida.

As diferenças entre os vários estratos tornam-se nitidamente mais acentuadas agora, se comparadas àquelas introduzidas pelos indicadores sócio-econômicos convencionais. Se estado civil não se mostra como um critério capaz de distinguir os grupos, o mesmo não ocorre para eventos de vida como alteração no estado civil ou alteração nas discussões conjugais. Um primeiro olhar já sugere que a interpretação dessas diferenças entre médias não pode ser superficial. A ocorrência de mudança no estado civil da mãe está associada, a um só tempo, a maiores níveis de competência e também a um escore sensivelmente maior no QMPI (p<0,01). Observa-se a mesma tendência para as diferenças entre médias segundo estado civil dos pais. Ressalve-se o desequilíbrio entre os subgrupos amostrais para essa variável. Também são observados escores mais altos, tanto de competência quanto de morbidade psiquiátrica, acompanhando a diminuição de discussões conjugais. É interessante observar que a condição de não alteração na quantidade de discussões associa-se ao índice mais alto de competência. O que significaria essa competência? Efeitos de acomodação? Adaptação a uma situação constante, não importando o quão dura, difícil, ela seja? Observe-se que se trata sobretudo da competência em atividades: quais as circunstâncias em que esse menino ou menina modificou o seu nível de habilidade nessas atividades? Mais uma vez, surge um dado que remete à discussão sobre a natureza do "ajustamento"; só com muita cautela se pode vincular essa competência a um estado de saúde mental; a competência percebida pelos pais pode estar fortemente enviesada por desejabilidade social e se distanciar de outros critérios mais essenciais, compatíveis com uma concepção ampla de saúde.

Talvez o mais importante seja assinalar que, se estas alterações em circunstâncias ambientais representam adversidade, não se segue daí que o impacto dessa adversidade seja negativo, no sentido de menor competência e maior morbidade psiquiátrica. Possivelmente, atuam aqui variáveis intervenientes, tais como diferenças individuais (tipo de enfrentamento, vulnerabilidade e resistência), a natureza específica da adversidade, o período da vida em que esta ocorreu e por quanto tempo se prolongou, na linha do que sugerem Clarke e Clarke (1986) e Rutter (1986).

Também quanto ao evento "brigas entre pais e filhos", a diminuição é a condição em que se observam escores médios mais altos de competência (sendo as diferenças estatisticamente significantes para o ACQTOTAL, ACQSOC e ACQESC), e também de morbidade psiquiátrica. Cabe a pergunta: como articular essa competência, esse suposto sucesso ao lidar com estressores, à morbidade? Novamente a condição de não alteração mostra-se ligada à média mais baixa de morbidade psiquiátrica, sugerindo a ocorrência de algum tipo de adaptação. Não se tem controle, porém, sobre o que essa "não alteração" expressa (ausência ou presença de brigas).

O último evento que se mostrou ligado a diferenças acentuadas entre as médias de ajustamento foi a ocorrência de mudança financeira. A melhoria financeira tende a aumentar os escores médios no ACQ (p<0,05), exceto em se tratando da competência em atividades (ACQATIV). Pode-se inferir que a atenção voltada para a questão da sobrevivência é menor com a melhora financeira, aumentando as chances para que os sujeitos desenvolvam suas habilidades. Quanto aos níveis de morbidade psiquiátrica, aumentam quando piora a situação financeira da família, sendo mais uma vez menores na ausência de qualquer mudança.

Medidas de variáveis atuando na família nos 5 primeiros anos de vida

A Tabela 4 apresenta os coeficientes de correlação de Pearson entre variáveis ambientais (respectivamente: escores que indicam qualidade do ambiente para sujeitos avaliados entre 0 e 3 anos de idade - HOME A - e entre 3 e 6 anos de idade - HOME B) e escores no ACQ e no QMPI.

Frente à hipótese segundo a qual são esperados, para mais altos escores de qualidade do ambiente doméstico, escores mais altos de competência e escores mais baixos de morbidade psiquiátrica, podem ser vistas correlações altas e positivas entre os escores gerais nas duas formas do HOME e quase todos os escores de competência (a exceção é o ACQESC). No estudo original, quando os escores no HOME foram correlacionados aos escores no QMPI das crianças que, nessas mesmas famílias, contavam entre 5 e 14 anos, foram encontradas associações fortes e negativas entre essas variáveis, nas análises de regressão linear e múltipla. O mesmo não pode ser dito dos presentes dados. Contudo, observa-se que os coeficientes mais expressivos (embora não tenham alcançado significância estatística) indicam quase sempre associações negativas, de acordo com o enunciado pela hipótese acima; trata-se, porém, nesses casos, de subescores do HOME. Foram mais expressivas as associações dos escores no QMPI com os fatores A2 e A1 do HOME A, respectivamente: "ausência de punição e restrição" e "responsividade emocional e verbal da mãe", e com os fatores B1 e B2 do HOME B: "estimulação através de brinquedos, jogos e material de leitura" e "estimulação da linguagem". Quanto a HOME B1, trata-se de uma associação positiva, pouco clara; os escores no HOME B2 seguem a mesma tendência que os escores no HOME A.

Na Tabela 5, são apresentados os coeficientes de correlação obtidos nas análises originais, mostrando o quão fortes foram as correlações, negativas, entre HOME A e QMPI, para o conjunto da amostra (n=545).

 

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Não se pode dizer que haja uma replicação desses dados, embora possa ser identificada, na análise atual, uma relativa primazia dos fatores do HOME A (especialmente no que se refere ao fator "ausência de punição e restrição"), sugerindo, como no estudo original, que, quanto mais inicial o período em que dada estimulação atua, maior parece ser o seu impacto sobre o desenvolvimento. Contudo, quando se consideram subescores específicos do HOME, há correlações mais altas com as medidas de competência. A fragilidade desses dados, provenientes de um número amostral pequeno, o período talvez excessivo entre o estudo original e o presente estudo, e a ausência de controle sobre outras intercorrências, incluindo especificidades ligadas à experiência de ser adolescente naquele contexto específico, não autorizam afirmações conclusivas. Além disso, as ressalvas feitas por Bastos (1986) sobre o próprio Inventário HOME, apontando a pequena adequação do conteúdo de vários de seus itens à realidade das famílias brasileiras estudadas, devem ser levadas em conta. Contudo, a presente discussão permite sem dúvida explorar esses resultados para desenvolver possibilidades de análise para utilização em novos estudos.

Observe-se que, quanto aos escores do HOME A, as correlações mais expressivas são obtidas com o subescore em competência social: mais altas e envolvendo três dos 7 escores HOME: o geral, a "responsividade emocional e verbal da mãe", e "o envolvimento materno com a criança". Aliás, quanto mais altos os escores nos fatores do HOME que avaliam qualidade da interação mãe criança, mais altos os escores de competência, e mais baixos os escores no QMPI.

Essa convergência entre o tipo de condição medida pelo HOME e a competência específica avaliada pelo ACQ não foi, porém, observada em outras associações; o que se pode dizer é que a competência social parece ser mais sensível para refletir o efeito da estimulação em idade precoce (aos 0 a 3 e aos 3 a 6 anos), especificamente dos fatores ligados à interação mãe-filho.

Já quanto aos itens presentes no HOME B, os correlações mais expressivas com as medidas de competência ocorrem com os fatores B7 (variedade de estimulação), B5 (estimulação do comportamento acadêmico) e B1 (estimulação através de brinquedos, jogos e material de leitura). São associações quase sempre positivas, e na maioria das vezes com o ACQATIV, que avalia competência em atividades, habilidades.

Por fim, o impacto relativo de fatores do HOME que avaliam a ausência de punição e restrição nos primeiros anos de vida merece um comentário especial, diante de sua relevância nas análises de regressão múltipla efetuadas quando das análises do estudo original. Na presente análise, esse impacto é relativamente menos visualizado, especialmente se comparado ao impacto dos demais fatores. Quanto mais ausentes punição e restrição física nos três primeiros anos de vida (HOME A), maior a competência escolar e menor a morbidade psiquiátrica; quanto mais ausentes entre os 3 e 6 anos de idade (HOME B), significantemente maiores os escores em competência escolar e social.

 

Conclusões

O caráter temporal do presente estudo, o modelo metodológico que permitiu retornar a alguns sujeitos amostrais após 10 anos e as análises procedidas lhe conferem um especial interesse. A escassez de estudos de caráter longitudinal, particularmente no que se refere à avaliação de efeitos a longo prazo da experiência precoce, valoriza adicionalmente as estratégias implementadas aqui. Inclui, além disso, medidas diferentes para ajustamento (problemas e competências).

Os resultados aqui analisados apontam para algumas conclusões importantes. De uma forma global, as associações entre as variáveis independentes referentes aos diferentes cortes temporais e às medidas de ajustamento tendem a se dar na direção esperada: melhores condições sócio-demográficas e maior qualidade da estimulação ambiental aparecem associadas a mais altos níveis de competência e a taxas mais baixas de morbidade psiquiátrica. Conclui-se que:

1. há uma leve tendência dos meninos a apresentarem níveis mais altos de competência e níveis mais baixos de morbidade psiquiátrica do que as meninas, contrariando o usualmente notado em inquéritos populacionais. Pode-se supor que, na faixa etária estudada, as meninas se encontrem na fase de transição em direção a apresentar índices mais altos de problemas de comportamento, conforme sugerido por Achenbach, Howell, Quay e Conners (1991) e por Graminha (1994). É possível que a sobrecarga de responsabilidades atribuída à menina em famílias de baixa renda (Bastos, 1994) esteja atuando aqui;

2. o trabalho fora de casa (trata-se sobretudo de meninos) parece constituir-se em um fator de proteção, tendo um nítido impacto no sentido de reduzir o escore no QMPI; é necessário lembrar, porém, que, como indicam Barros e Santos (1991), os possíveis efeitos do trabalho infantil só podem ser avaliados quando considerados a longo prazo. De imediato, é importante registrar a ligeira diminuição na competência escolar da criança que trabalha;

3. apenas 13 dos 54 sujeitos fazem parte de famílias com renda per capita acima de um salário mínimo. A variável renda parece diferenciar significantemente apenas os escores médios em competência escolar; no entanto, nas análises de regressão linear, aparece forte e positivamente associada aos escores em competência social e global, e negativamente associada ao escore no QMPI;

4. variáveis sócio-demográficas (inserção produtiva, escolaridade, idade, estado civil) têm impactos diferenciados sobre os filhos conforme ligadas ao pai ou à mãe, o que recomenda a consideração da construção cultural de papéis sociais;

5. eventos do curso de vida, incluídos nesta análise para especificar mais a cadeia de variáveis envolvida na determinação ambiental do ajustamento, introduzem diferenças entre médias nitidamente mais acentuadas, quando se comparam seus efeitos aos dos indicadores sócio-econômicos convencionais (medidas mais "estáticas").

6. os resultados, especialmente quando expressam associações entre a presença de adversidade e níveis mais altos de competência, fazem pensar na complexidade inerente à determinação do ajustamento; sugerem também que só com muita cautela se pode vincular competência a um estado de saúde mental, uma vez que a competência percebida pode estar fortemente enviesada pela desejabilidade social e se distanciar de critérios mais válidos, podem assim coexistir com um nível maior de morbidade psiquiátrica. Chamam a atenção, também, para a atuação de possíveis variáveis intervenientes: diferenças individuais ligadas ao tipo de enfrentamento, a vulnerabilidade e resistência, à natureza específica da adversidade, ao período de vida em que esta ocorreu e à duração (por quanto tempo se prolongou);

7. foram obtidas correlações altas e positivas entre os escores gerais nas duas formas do HOME e quase todos os escores de competência; de uma forma global, pode ser dito que se mantém a tendência de "maior qualidade, [maior competência e] menor morbidade psiquiátrica", já presente na análise original. Além disso, os fatores do HOME que medem interação mãe-filho e a ausência de estimulação aversiva aparecem nas duas análises, mas com pesos diferentes. Os subescores que avaliam nível de competência social mostraram-se os mais sensíveis para refletir o efeito da estimulação em idade precoce. Os fatores medindo qualidade da estimulação nos primeiros anos de vida e que apareceram mais expressivamente correlacionados a ajustamento foram: responsividade emocional e verbal da mãe, envolvimento materno com a criança, ausência de punição e restrição (HOME A) e variedade de estimulação, estimulação do comportamento acadêmico, estimulação através de brinquedos, jogos e material de leitura (HOME B).

Apesar das limitações já apontadas, o enfoque apresentado supera uma abordagem meramente transversal, explorando a possibilidade de investigar os efeitos a longo prazo de contingências ambientais precoces, considerando variáveis que se referem a três cortes no tempo (dados atuais, dados dos últimos 5 anos, e dados dos primeiros 5 anos de vida - de 10 anos atrás). Como perspectivas, podem ser sugeridas estratégias de análise capazes de explorar esta riqueza, a exemplo de: identificação de seqüências de eventos descritores de trajetórias de vida, considerando sujeitos nos pontos extremos (alta/baixa competência e alta/baixa morbidade psiquiátrica) e exploradas também a partir dos estudo de casos (em andamento); e uma análise de conteúdo dessa competência.

 

Referências

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